Prof.ª Dr.ª Stela Cristina de Godoi[1]
Prof.º Dr. º Paulo Ricardo Da Silva Oliveira[2]
Gabriela Felix[3]
Júlia Rizza dos Santos[4]
Patrícia da Silva Ferreira[5]
Introdução
A presente nota técnica se propõe a aprofundar a análise sobre a vulnerabilidade social que iniciamos em “Mulheres e vulnerabilidade social no município de Hortolândia-SP” [6], na qual buscamos apreender o fenômeno na perspectiva da interseccionalidade [7] de classe, raça/cor e sexo.
Os mesmos dados do Cadastro Único de Hortolândia, extraídos em maio de 2020, agregados agora por chefia de família, evidenciam que os lares de baixa renda do município são, em sua maioria, chefiados por mulheres pretas e pardas. Ademais eles apontam para a existência de uma forte correlação entre o elevado grau de informalidade e desregulamentação do mercado de trabalho, com o fenômeno da vulnerabilidade social.
Neste sentido, neste escrito pretendemos desenvolver melhor o argumento de que gênero, raça e o fenômeno da informalidade no mercado de trabalho estruturam a vulnerabilidade social, a partir da análise da renda e filiação social das mulheres que se declararam responsável por sua família no Cadastro Único para Programas Sociais dessa municipalidade.
Afirmamos que as mulheres pardas e pretas, em consequência da rede de cuidado que se forma a partir de sua atuação na comunidade, poderiam ser alvo estratégico na construção de políticas públicas para o enfrentamento da vulnerabilidade social. Essa centralidade se confirma com os dados apresentados a seguir.
Método de agregação dos dados
Para produção das tabulações analisadas nesta nota, foram utilizados os micro-dados do Cadastro Único (CaDUnico) municipal, fornecidos pela Secretaria de Inclusão e Desenvolvimento Social de Hortolândia, em maio de 2020. O cadastro fornecido contém mais de 186 variáveis demográficas e socioeconômicas para 53.668 indivíduos pertencentes a 20.368 famílias. No processo de tratamento dos dados, devido à ausência de valores para algumas variáveis, computou-se 20.235 famílias para esta nota.
O método consistiu na aplicação de rotinas de agregação e síntese dos dados desenvolvidas em linguagem R. A agregação, primeiramente, caracteriza-se como a contagem de indivíduos em cada grupo. Para criação dos grupos utilizamos o cruzamento das categorias de sexo (masculino e feminino) e raça/cor (branca, preta, parda, amarela, indígena e não declarado), resultando em 12 grupos de indivíduos. Desta forma, se Nk é o número de chefes de família para cada grupo de cor e sexo, temos
Onde K é o grupo de cor e sexo e o subscrito é o indexador de indivíduos, i.e. chefes, de família presentes no cadastro.
A partir disto, para computar a quantidade de chefes de família em cada grupo, Nk , que apresenta certa característica socioeconômica, utilizamos a seguinte agregação:
Portanto, Yk representa o total de chefes de família em cada grupo, com determinada característica socioeconômica, como por exemplo renda familiar per capita mensal menor do que R$89,00.
Análise
Os dados no gráfico abaixo nos colocam diante do processo contraditório de inserção das mulheres na sociedade de classes e de sua crescente vulnerabilidade social no contexto do capitalismo financeiro globalizado.
Vamos pensar um pouco sobre a forma específica assalariada do trabalho. O trabalho assalariado emerge sob uma forma inédita nas sociedades modernas de classe: como atividade social que podemos objetivar, isto é, uma série de operações baseada em um tempo mensurável necessário para realizá-las. Essa passa ser a questão central: a apropriação do tempo do assalariado pelo capitalista.
Contudo, de acordo com Hirata & Kergoat (2002), nesse esquema as relações entre homem e natureza tenderam a ser naturalizadas, bem como foram invisibilizadas as relações de sexo no trabalho. Ou seja, o que existem não são homens, como ser humano universal, mas homens e mulheres estabelecendo trocas específicas com as naturezas, o tempo e o espaço:
“A divisão do trabalho entre os homens e mulheres é parte integrante da divisão social do trabalho (…) surgiu simultaneamente ao capitalismo. (…) Do nascimento do capitalismo ao período atual, as modalidades da divisão do trabalho entre os sexos, (…) evoluem no tempo de maneira concomitante às relações de produção. (…) Embora a divisão sexual do trabalho se enraíze na atribuição prioritária do trabalho doméstico às mulheres, de modo algum pode ser considerada operante simplesmente no que diz respeito às mulheres (…) Muito pelo contrário, trata-se de uma problemática (…), e de uma problemática que atravessa e dá sentido ao conjunto das relações sociais que a expressão “divisão social do trabalho” abrange.” (p. 235)
Fraser (2019), em artigo recente sobre as características específicas do atual regime de reprodução social (trabalho doméstico e do cuidado) e de produção econômica afirma que no atual capitalismo financeirizado global:
“A indústria [se desloca] para regiões onde as remunerações são mais baixas, recruta as mulheres para a força de trabalho paga e promove a redução dos investimentos estatais e empresariais em bem-estar social. Expelindo de si o trabalho de cuidado e lançando-o sobre as famílias e as comunidades, ele diminui, simultaneamente, as capacidades de que elas dispõem para desempenhar esse trabalho. O resultado, em meio à desigualdade crescente, é uma organização dualizada da reprodução social, mercadorizada para quem pode pagar para dela usufruir, privatizada para quem não o pode – tudo lustrado pelo ideal ainda mais moderno da “família de dois ganhadores de dinheiro”.” (Fraser, 2019, p. 267-8)
Assim, de modo geral, desde a última década do século passado vem ocorrendo, ao mesmo tempo, uma feminilização do mercado de trabalho, com predomínio do trabalho feminino em atividades precárias e informais, aliado à uma divisão sexual desigual do trabalho doméstico e do cuidado (Burschini, 2007). Além disso, é importante frisar que, em 2013 as Nações Unidas reconheceram que o peso do trabalho doméstico não-remunerado aumenta com a pobreza, penalizando mais duramente as meninas e mulheres da periferia global.
Neste sentido, é levando em consideração essa atualização do processo global de inserção precarizada das mulheres na sociedade de classes, que buscaremos interpretar os dados específicos apresentados nessa Nota Técnica sobre a situação das chefes de família de baixa renda em Hortolândia, em uma cidade da Região Metropolitana de Campinas.
No gráfico abaixo podemos observar, em números absolutos, a distribuição dos chefes de família do CadÚnico de Hortolândia-SP em grupos de sexo e raça/cor.
As mulheres, independente da raça/cor autodeclarada, são mais presentes na chefia de famílias de baixa renda, compondo um universo de 17.035 indivíduos, contra 3.125 homens responsável familiar. Essa informação também pode ser visualizada no gráfico abaixo como percentual no conjunto da amostra de responsáveis familiares. A informação que salta aos olhos é que quase 85% das famílias de Hortolândia, acompanhadas pelo poder público através do Cadastro Único para Programas Sociais, é chefiada por uma mulher.
Deste modo, por se tratar necessariamente de famílias de baixa renda e com maior dificuldade de acessar ativos sociais na sociedade de mercado, os dados denunciam que o sexo/gênero estrutura a vulnerabilidade social. Por sua vez, quando fazemos o recorte racial, os dados sobre chefia de família revelam um mesmo padrão de raça/cor nos dois grupos.
Os dois gráficos acima revelam, portanto, que mais de 60% das famílias têm um homem ou uma mulher negra (preto/a ou pardo/a) como responsável familiar. Ou seja, sendo a população negra predominante na chefia de família, independente do seu sexo/gênero, podemos afirmar que também a raça/cor estruturam a vulnerabilidade social. Seguimos fazendo os recortes de sexo e raça/cor para analisar tanto a dimensão econômica, quanto social da vulnerabilidade. No gráfico abaixo, distribuímos a população de chefes de família em quatro faixas de renda média: até R$ 89,00, entre R$ 89,00 e R$ 178,00, entre R$ 178,00 e meio salário-mínimo e, por último, acima de meio salário-mínimo.
Com relação à renda média da família, notamos pela imagem acima que, em valores absolutos, as mulheres, em todos os grupos de raça/cor, se concentram na pior faixa de renda (até R$ 89,00), sendo mais discrepante para as mulheres brancas e pardas. Ao contrário, o gráfico mostra que os homens chefes de família, em todos os grupos de raça/cor, se concentram na melhor faixa de renda (acima de meio salário-mínimo), ainda que esse grupo de sexo seja menos numerosos, como já apontamos anteriormente. Assim, os dados de Hortolândia parecem confirmar a tese da feminilização da pobreza.
Contudo, além de analisar a dimensão econômica da vulnerabilidade social, perguntamos aos dados quais as formas de filiação desses indivíduos na estrutura do mercado de trabalho, uma vez que vulnerabilidade não é apenas pobreza de renda, mas também fragilidade nos vínculos com as instituições sociais garantidoras de direitos e reconhecimento social.
Como afirmamos anteriormente, o conceito de vulnerabilidade social é polissêmico e multifacetado. Diante desse caráter prismático do conceito, optamos nesse momento de interpretar os dados colocando a ênfase sobre os processos de filiação e desfiliação social à sociedade salarial. Para fazer essa análise agrupamos por sexo e raça/cor todas as respostas da população do CadÚnico de Hortolândia-SP em maio de 2020, para a variável ID 88 da Tabela_Pessoa.
A primeira informação que a tabela acima nos fornece é que menos de 25% do total de chefes de família (539 homens e 4.100 mulheres) declararam desempenhar alguma função laborativa. O número é baixo e levanta a suspeita de que ¾ dessa população do Cadastro não tenha nenhuma renda vinda do trabalho, mesmo daqueles trabalhos mais precários previstos como resposta a essa variável ID 88 da Tabela_PEssoa.
Mas, para além disso, considerando apenas esses indivíduos que responderam à pergunta sobre a função principal do chefe de família, observamos que a grande maioria enfrenta o agravo do trabalho informal de baixa qualificação (trabalhos autônomos, bicos, emprego doméstico ou em empresa sem registro em carteira).
Ou seja, se entendermos a vulnerabilidade social como processo de desfiliação da sociedade salarial (Castel, 1998; Castel, 1994), observamos que a desregulamentação do trabalho imposta pela cartilha neoliberal desde a última década do século XX é uma das principais causas do aumento da vulnerabilidade social nesse século.
Quando olhamos mais atentamente para os homens e as mulheres, notamos que 74% das 4.100 mulheres chefes de família, que declararam exercer alguma função laborativa, estão à margem dos direitos sociais do trabalho, sobrecarregando, por sua vez, os serviços de Assistência Social. Entre os homens chefes de família, embora sejam a minoria nessa população de baixa renda, percentualmente estão na mesma condição precarizada do trabalho informal: 70% dos 539 homens, realizam trabalhos autônomos, bicos ou trabalham em empresa sem registro em carteira de trabalho. Assim, homens e mulheres de baixa renda, além das dificuldades impostas pela pobreza de renda, chefiam suas famílias sob condições muito instáveis do ponto de vista de seus vínculos com a sociedade salarial. Neste sentido, os dados apontam para o fato de que sexo, raça estruturam a vulnerabilidade social, a qual se agrava com o cenário de desmantelamento dos direitos sociais do trabalho.
Referências Bibliográficas
BRUSCHINI, Maria Cristina Aranha. “Trabalho e gênero no Brasil nos últimos dez anos”. Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, p. 537-572, set./dez. 2007.
CASTEL, Robert. La dynamique des processos de marginalisation: de la vulnerabilité à la désaffiliation. Cahiers de recherche sociologique, n. 22, p. 11-27, 1994.
______. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
FRASER, Nancy. “Contradições entre capital e cuidado”. Princípios: Revista de Filosofia, Natal, v. 27, n. 53, maio – ago. 2020. ISSN1983-2109
Hirata, Helena & Kergoat, Daniele. “Relações sociais de sexo e psicopatologia do trabalho” In: Hirata, H. Nova divisão sexual do trabalho? Um olhar voltado para a empresa e a sociedade. São Paulo: Boitempo, 2002.
[1] Docente extensionista da Faculdade de Ciências Sociais (CCHSA/PROEXT/PUCC). E-mail: stela.godoi@puc-campinas.edu.br
[2] Docente extensionista da Faculdade de Economia (CEA/PROEXT/PUCC). E-mail: paulo.oliveira@puc-campinas.edu.br
[3] Graduanda do 6º semestre em Ciências Sociais na PUC-Campinas. E-mail: gabifelix2403@gmail.com
[4] Graduanda do 8º semestre de Economia na PUC-Campinas. E-mail: rizzajusantos@gmail.com
[5] Graduanda do 4° semestre em Ciências Sociais na PUC-Campinas. E-mail: patricia.cchsa@gmail.com
[6] [https://observatorio.puc-campinas.edu.br/mulheres-e-vulnerabilidade-social-no-municipio-de-hortolandia-sp/]
[7] O debate sobre a interseccionalidade é uma contribuição das autoras situadas no campo do feminismo negro, mas também é discutido por algumas sociólogas marxistas brasileiras, tais como Saffioti (2013) e Hirata & Kergoat (2002).