Stela Cristina de Godoi[1] Vitória Debroi Silva[2] Paulo Ricardo Da Silva Oliveira[3]
Vulnerabilidade social e interseccionalidade
O conceito de vulnerabilidade social surge no fim do século XX e início do século XXI, com as profundas modificações no mundo do trabalho e agravamento de problemas sociais, como desemprego estrutural, subemprego etc. A vulnerabilidade está atrelada a uma condição de vida precária, desfavorável, que dentro do contexto social significa estar mais suscetível a adversidades. Ou seja, está ligado a fatores de risco que causam consequências negativas e indesejadas no cotidiano. (SCOTT et al, 2018).
Para compreender a vulnerabilidade deste ponto de vista, é preciso levar em consideração diferenças grupais e identitárias. O grupo é localizado de acordo com a posição que ocupa em um conjunto social. A vulnerabilidade surge como um resultado negativo entre a “disponibilidade de recursos materiais e simbólicos dos atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais, econômicas, culturais que provêm do Estado, do mercado e da sociedade” (FIGUEIREDO; NORONHA, 2008, p. 131).
De acordo com Abramovay (2002), a condição de vulnerabilidade social é aquela em que um grupo social não tem os recursos e habilidades suficientes ou adequados para enfrentar as possibilidades apresentadas pela sociedade. Possibilidades tais que representam formas de alcançar melhor qualidade de vida, de maneira que esses grupos tenham menor possibilidade de mobilidade social, isto é, de se movimentar nas ordenações sociais e econômicas, permanecendo em uma situação desfavorável. É importante ressaltar que a vulnerabilidade social não se relaciona somente com a situação econômica, mas é complexa e multifacetada e é entendida a partir de organizações simbólicas, como raça, etnia, gênero e orientação sexual. É preciso considerar também o acesso à saúde, educação, bens, serviços, e as características específicas da comunidade. (GUARESCHI et. al., 2007)
Portanto, falar em vulnerabilidade é falar em um contexto social e político extremamente complexo, porque envolve ou reflete os diferentes sistemas de dominação social: o capitalismo, o racismo e o sexismo. Ou seja, sugerimos que a perspectiva da interseccionalidade[3] de classe, raça/cor e sexo é imprescindível para uma análise da vulnerabilidade, uma vez que entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Como afirma Davis (2016), ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras, mas todas elas em conjunto incidem sobre a vivência de determinadas condições materiais de existência.
Metodologia
Dentro deste recorte teórico metodológico, este escrito busca analisar a condição de vulnerabilidade social das mulheres de Hortolândia, a partir da seleção de algumas variáveis socioeconômicas do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), um dispositivo de coleta de dados, cujo objetivo é identificar as famílias de baixa renda do Brasil e incluí-las em programas assistenciais e de redistribuição de renda.
O Cadastro Único foi criado em 2001, quando programas de transferência de renda começaram a ser implantados no Brasil, para combater a pobreza. Os diversos programas existentes na época estavam ligados a diferentes cadastros para identificar o público-alvo, o que fragmentava a rede de assistência. O CadÚnico veio como uma maneira de facilitar a inserção de mais famílias em situação de vulnerabilidade nestes programas sociais. Inicialmente houve problemas de gestão e o instrumento só foi consolidado em 2003, com o Programa Bolsa Família. A versão mais recente do instrumento é de 2011, o CadÚnico 7, em formato de aplicativo. Os novos formulários estão em consonância com a versão on-line, e contam com maior detalhamento na caracterização da população com baixa renda. Assim, atualmente funciona como banco de dados em nível nacional, para integrar famílias em benefícios sociais. (WORLD WITHOUT POVERTY, [20–]).
Para compreender as especificidades da condição de vulnerabilidade social da população de Hortolândia, estamos utilizando os dados do CadÚnico do município, atualizado até fevereiro de 2020. Estão cadastradas apenas as famílias de baixa renda, que ganham até meio salário mínimo por pessoa, ou até 3 salários mínimos de renda mensal total familiar. Contudo, nessa análise exploratória dos dados[4], estamos buscando identificar os seus diferentes níveis de risco de vulnerabilidade, levando em consideração o sexo e a raça/cor.
Inicialmente separamos a população total em dois grandes grupos: brancos/as e não-brancos/as. Observamos posteriormente que, no universo de não-brancos/as, a presença de pretos/as e pardos/as era majoritária. Entre os 22.337 homens, 71,40% se declararam pretos/pardos e 28,3 % se declararam brancos. O perfil racial das mulheres segue o mesmo padrão. No total de 31.331 mulheres, 66,8% se declararam pretas/pardas e 32,9% brancas. Em cada segmento de sexo, as outras raças/cor são apenas 0,3% da amostra.
Assim, para não ocultar semanticamente a população negra, subsumindo-a ao referente branco/a, escolhemos apresentar graficamente os dados selecionados em dois grandes segmentos que identificaremos como: branco/a e preto/a/pardo/a. Analisamos o comportamento da renda, do arranjo familiar e da faixa etária dessa população.
Análise: aspectos econômicos e sociais da vulnerabilidade em Hortolândia
No banco de dados em que estamos debruçados, há um total de 53.645 indivíduos, o que corresponderia a aproximadamente 23% da população de Hortolândia estimada pelo IBGE para 2019, de acordo com o senso de 2010 (população estimada de 230.851). De acordo com essa estimativa, quase ¼ da população vive com renda menor do que R$ 500,00 reais por mês para custear todas as suas necessidades sociais: moradia, alimentação, educação, saúde, lazer.
A tabela abaixo reúne informações importantes para uma análise mais precisa do perfil econômico da população vulnerável de Hortolândia. O gráfico abaixo mostra que nem mesmo os homens brancos, que têm as rendas mais altas, chegam próximo de ½ salário mínimo de renda mensal.
As mulheres negras são as que se encontram em piores condições, contando, em média, com apenas R$ 145,43 de renda mensal, como evidencia a tabela abaixo com os valores nominais da renda:
Todavia, é importante destacar que o achatamento da renda das mulheres, quando comparada aos homens, não é um fato isolado no tempo, nem tampouco uma exceção dentro de seu grupo familiar. Quando olhamos para a renda per capita da família, o que inclui a média de rendimentos de todos os seus membros, fica evidente como as pessoas pretas e pardas convivem com piores patamares de renda.
Neste sentido, é fundamental entender a vulnerabilidade social na perspectiva da interseccionalidade de sexo e raça/cor. Quando analisamos a vulnerabilidade econômica a partir da renda familiar, a mesma tendência com relação ao sexo se confirma. Entretanto, fica visível também a racialização da pobreza no Brasil, conforme podemos observar no gráfico abaixo:
O conjunto de dados analisados acima demonstra não só que, em geral, as mulheres vivem com renda mensal menor do que os homens, mas que essas condições econômicas adversas são muito mais frequentes entre os indivíduos pretos e pardos, do que entre os brancos. Juntos, homens e mulheres pretas e pardas do cadastro perfazem o total de 29.329 pessoas vivendo com uma renda familiar total menor do que 1 salário mínimo, contra as 12.411 pessoas brancas na mesma condição. Ou seja, a raça/cor preta e parda mais que dobra o risco de vulnerabilidade social na sociedade brasileira.
Embora tenhamos considerado até agora o rendimento dos indivíduos em si mesmos, não podemos perder de vista a rede de cuidado que se articula entre os sujeitos. Dito de outro modo, além desses atributos econômicos discutidos até o momento, o diagnóstico da vulnerabilidade precisa levar em consideração as pessoas em suas inserções familiares. Esses baixos rendimentos impactam ou são impactados de que modo pelos diferentes arranjos familiares?
Uma análise exploratória dos dados sobre chefia de família e pirâmide etária da população permite algumas observações relevantes. As mulheres pretas e pardas, além de terem as menores rendas, são também a maioria dentre aquelas que são responsáveis por seu grupo familiar[5].
O gráfico acima mostra que a população vulnerável de Hortolândia está marcada pela presença feminina na responsabilidade pela condução de suas famílias. Juntas – mulheres brancas, pretas e pardas – compõem cerca de 32% do total de indivíduos cadastrados no banco de dados, enquanto os homens chefes de família são menos de 6% do total. Por que 1/3 da população vulnerável é chefe de família? O que esse dado expressa e o que ele oculta?
No Brasil e, em geral, nas sociedades de passado escravocrata[6], sempre convivemos com uma variedade de arranjos familiares[7], a despeito da hegemonia do modelo de família patriarcal, branca e chefiada por homens. Segundo Corrêa “A ‘família patriarcal’ pode ter existido, e seu papel ter sido extremamente importante, apenas não existiu sozinha, nem comandou do alto da varanda da casa grande o processo total de formação da sociedade brasileira.” (p. 25).
A compreensão dessa presença marcante da chefia de família entre mulheres – em especial entre as mulheres pretas e pardas – pode ser iluminada se levarmos em consideração a pirâmide etária da população de homens e mulheres no CadÚnico de 2020. Podemos observar uma diminuição da quantidade de indivíduos do sexo masculino comparativamente às mulheres durante a vida adulta, sobretudo na faixa etária de 25 a 34 anos.
A existência de um número grande de famílias chefiadas por mulheres dentro dessa população vulnerável de Hortolândia pode estar relacionada com esse declínio da população de homens adultos. A explicação das causas concretas desse declínio carece de maiores investigações. De qualquer modo, seja porque esses homens migram, morrem ou abandonam suas famílias, é possível observar que o arranjo familiar é um fator que aumenta o risco de vulnerabilidade social.
A pirâmide etária da população total de Hortolândia estimada para 2020, de acordo com dado do censo de 2010, mostra uma configuração equilibrada entre homens e mulheres nas diferentes faixas etárias.
O mesmo não se repete na pirâmide etária elaborada a partir dos dados da população que está em situações de vulnerabilidade social, cadastrada no CadÚnico. O gráfico abaixo evidencia que a população mais vulnerável é a feminina e que, de algum modo, as comunidades perdem seus homens.
Nessa perspectiva sobre as famílias brasileiras, poderíamos afirmar que os dados aqui analisados retratam a dinâmica inercial desse fenômeno social, pois ao mesmo tempo em que são uma fotografia do tempo presente, reproduzem padrões sociais do passado, herdados do colonialismo e da escravização da mão de obra trazida pela diáspora africana.
Assim, no que diz respeito ao mapeamento da vulnerabilidade social na perspectiva da interseccionalidade de sexo e raça/cor, podemos afirmar que as mulheres pardas e pretas, em consequência da rede de cuidado que se forma a partir de sua atuação na comunidade, são um alvo estratégico na construção de demandas estruturadas de políticas públicas para o enfrentamento da pobreza e da desigualdade social. Como afirma Ribeiro (2018), “pensar feminismos negros é pensar projetos democráticos” (p. 7). Fazer esse recorte de raça não é apenas uma questão de identidade, mas de ter uma compreensão crítica da exclusão e violência vividas por mulheres pretas e pardas.
Ao falar de mulheres, deve-se sempre questionar quais mulheres, pois há especificidades internas à condição feminina. Assim, a perspectiva da interseccionalidade sugerida pelo feminismo negro[8] é crucial para entender o impacto do racismo estrutural sobre as mulheres trabalhadoras. Ribeiro (2018) pontua que “Ao perder o medo do feminismo negro, as pessoas privilegiadas perceberão que nossa luta é essencial e urgente, pois enquanto nós, mulheres negras, seguirmos sendo alvo de constantes ataques, a humanidade toda corre perigo” (2018, p. 27).
Dessa forma, entende-se que a agenda do feminismo negro se insere numa proposta de democracia social radical, porque vai à “raiz do problema”. Para construir uma sociedade democrática, é impossível pensar as estruturas de classe, raça e sexo de forma separada. Logo, ao pensar projetos políticos, é preciso também considerar as especificidades de cada sujeito dentro dessas estruturas sociais dadas.
[1] Economista (FCL/Unesp), doutora em Sociologia (IFCH/Unicamp, professora extensionista da Faculdade de Ciências Sociais/PUC-Campinas), coordenadora do projeto ARTiculadas.
stela.godoi@puc-campinas.edu.br; stelagodoi80@gmail.com
[2] Graduanda da Faculdade de Psicologia/PUC-Campinas, aluna voluntária de Iniciação à Extensão no Projeto ARTiculadas, coordenado pela Profa Stela Cristina de Godoi.
[3] De acordo com Ribeiro (2018), os modelos de opressões – racismo, patriarcado e capitalismo – se cruzam e se combinam, produzindo novas opressões.
[4] A retirada e agrupamento das informações do CadÚnico, sobre os atributos renda, chefia de família e faixa etária analisados pelas autoras, foi realizado pelo professor extensionista Paulo Ricardo da Silva Oliveira (Faculdade de Ciências Econômicas PUC-Campinas).
[5] Entende-se por chefe de família aquele/a que é responsável financeira e socialmente pela gestão do núcleo familiar.
[6] Davis (2016), olhando para a sociedade americana, observa a centralidade da questão racial no debate sobre a experiência feminina dentro de suas relações de produção. Ou seja, Davis (2016) mostra como a mulher negra foi desumanizada no espaço público, do trabalho escravizado, ao mesmo tempo em que viviam condições de muito maior equidade nas relações privadas do que as mulheres brancas na mesma época. A autora também sugere ser imprescindível uma análise crítica da ideologia da feminilidade, já que as mulheres negras eram associadas, ao contrário, a uma ideia de força física ou de corpos que podem suportar mais. Com a industrialização e a introdução do ideário liberal, as mulheres negras foram incorporadas ao trabalho produtivo, sem poder abrir mão do reprodutivo. Enquanto as mulheres brancas lutavam pelo direito ao trabalho, as mulheres negras já vinham sendo lançadas ao mercado de trabalho doméstico, “como mães e esposas substitutas em milhões de casas de famílias brancas.” (Davis, 2016, p. 239).
[7] Del Priore (2013) mostra que era comum no período colonial no Brasil que as mulheres negras, pobres e sem dotes se “amasiassem” para ter proteção. Na maioria, homens e mulheres viviam amigados antes de se casar e a escolha do/a parceiro/a não tinha relação com a conservação da propriedade, como ocorria entra as famílias brancas das elites. A luta pelo sustento era sua principal tarefa. No casamento “a moda da terra”, as pessoas se escolhiam porque se gostavam e passavam a trabalhar juntas e a ter filhos. Muitas só recorriam à Igreja ao final da vida, pois temiam ir para o inferno.
[8] O debate sobre a interseccionalidade é uma contribuição das autoras situadas no campo do feminismo negro, mas também é discutido por algumas sociólogas marxistas brasileiras, tais como Saffioti (2013) e Hirata & Kergoat (2002).
Referências
ABRAMOVAY, M. et. al. Juventude, violência e vulnerabilidade social na América Latina: desafios para políticas públicas. Brasília: Unesco, 2002. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000127138. Acesso em: 17 jul. 2020
CORREA, Mariza. Repensando a família patriarcal brasileira. Cadernos de pesquisa, São Paulo, n.37, p. 5-16, maio, 1981.
DAVIS, A. Mulheres, raças e classe. São Paulo, Boitempo, 2016.
DEL PRIORE, Mary. Conversas e histórias de mulher. São Paulo: Planeta, 2013.
FIGUEIREDO, I.; NORONHA, R. L. de. A vulnerabilidade como impeditiva/restritiva do desfrute de direitos. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, [s.l.], n. 4, p. 129, 25 ago. 2008. Disponível em: http://sisbib.emnuvens.com.br/direitosegarantias/article/view/10. Acesso em: 17 jul. 2020.
GUARESCHI, N. M. F. et al. Intervenção na condição de vulnerabilidade social: um estudo sobre a produção de sentidos com adolescentes do programa do trabalho educativo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 20-30, mar. 2007.Disponível em: http://www.revispsi.uerj.br/v7n1/artigos/html/v7n1a03.htm#mailfim. Acesso em: 12 jun. 2020.
HIRATA, Helena & KERGOAT, Daniele. “Relações sociais de sexo e psicopatologia do trabalho” In: HIRATA, H. Nova divisão sexual do trabalho? Um olhar voltado para a empresa e a sociedade. São Paulo: Boitempo, 2002.
RIBEIRO, D. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher na sociedade de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
SCOTT, J. B. et al. O conceito de vulnerabilidade social no âmbito da psicologia no Brasil: uma revisão sistemática da literatura.Psicol. rev. (Belo Horizonte), Belo Horizonte, v. 24, n. 2, p. 600-615, ago. 2018. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-11682018000200013&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 11 jun. 2020.
WORLD WITHOUT POVERTY. Breve Histórico do Cadastro Único. [20–]. Disponível em: https://wwp.org.br/wp-content/uploads/2016/12/breve_historico_do_cadastro_unico.pdf. Acesso em: 11 jun. 2020.