Vulnerabilidade socioterritorial na Região Noroeste de Campinas, SP: considerações

Equipe:

Vera Lúcia dos Santos Placido [1]
Danilo Mangaba de Camargo [2]
Felipe Pedroso de Lima [3]
Jacqueline dos Santos Oliveira [4]

Vulnerabilidade e território

Compreender a vulnerabilidade no território é um imenso desafio. Isto porque os dois conceitos – vulnerabilidade e território envolvem muitas compreensões e, às vezes, distintas metodologias de análise.  Somando-se a isso esses conceitos, tornados empíricos, são resultados de diferentes processos históricos, exigindo que o nosso olhar seja ainda mais atento, ou seja, sob pena de não se cometerem  generalizações para situações específicas, é necessário um recorte tempo/espaço muito claro. Nesse sentido, atentar-se para a temporalidade é fundamental para se compreender a vulnerabilidade em diferentes tempos e espaços, mesmo que a área geográfica não se tenha alterado. Olhar para o tempo que se foi e identificar o que ainda persiste ou se alterou no tempo presente significa considerar a dinâmica territorial tão presente nas relações sociais. Ao longo de uma década, por exemplo, novas políticas públicas são implementadas, outras deixam de ter validade, novas técnicas – antes desconhecidas – passam a balizar a vida social e as suas necessidades mais imediatas, pessoas chegam e outras vão para outros lugares; ou seja, uma década é muito tempo quando se considera a temporalidade que é o processo enquanto estrutura que envolve o tempo. Analisar os fenômenos sociais em diferentes temporalidades nos permite identificar padrões e regularidades ou até mesmo deformidades, fundamentais na análise tempo/espaço.

Com essas preocupações em tela e considerando que os dados censitários do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – não foram atualizados neste ano em função da Pandemia que estamos vivendo, tomamos a pesquisa desenvolvida por Marques, Silva e Camargo (2017) em relação ao Índice de Vulnerabilidade Social como ponto de partida para a análise que aqui se apresenta, tendo em vista que o referido trabalho centrou suas preocupações na realidade territorial de Campinas.

No que tange ao território, tal como a vulnerabilidade social, também é um conceito polissêmico. No entanto, percebe-se uma linha mestra em suas várias possibilidades de compreensão: o território está intimamente relacionado a conflitos e o que alimenta o teor desses conflitos são os diversos usos que se estabelecem em um determinado espaço geográfico. Os usos, por sua vez, são escalares e abarcam desde a dimensão do vivido até as diferentes redes (econômicas, serviços e infraestrutura, ligadas ao próprio sistema capitalista) que se superpõem umas às outras. O acesso a essas redes, em suas diferentes camadas, é fundamental para o exercício pleno da cidadania, como nos alertava Milton Santos (2001)

Dessa forma, o território não é uniforme em toda a região. Ele pode ser percebido em verdadeiras manchas sendo umas, evidentemente, mais conectadas às diferentes redes, que outras. Assim, analisar a vulnerabilidade socioterritorial implica, num primeiro momento, identificar quem são os grupos sociais mais vulneráveis e, em seguida, ao exercício de perceber como os diferentes grupos dispõem dos diferentes ativos (nos dizeres do IPEA, 2018) e, mais ainda, como acessam as redes materiais e imateriais presentes em seu território. Quanto mais vulneráveis, ou seja, desprovidos de formas para se apropriar e manter os ativos necessários para uma boa qualidade de vida, mais dificuldades enfrentarão para acessar as redes, por vezes, até mesmo as redes básicas de serviços públicos oferecidos. Assim, tem-se uma exclusão que é produto de vários não acessos a ativos básicos e, ao mesmo tempo, é processo em um círculo vicioso, que não se rompe facilmente sem a presença de políticas públicas territoriais.

Como a abrangência do tema aqui tratado é complexa, nesta nota técnica o delineamento teórico/metodológico e empírico baseia-se na questão norteadora:  Onde estão e quem são os grupos vulneráveis na região noroeste de Campinas? Acredita-se que responder esta questão é o primeiro passo a ser dado na direção de entender o caráter espacial/territorial da vulnerabilidade.

Metodologia                                                       

Do ponto de vista metodológico, a presente nota utilizou a pesquisa realizada por Marques, Silva e Camargo (2017) quanto ao Índice de Vulnerabilidade Social[1] por entender que, independente da polissemia do termo vulnerabilidade e das várias dimensões que ele abarca, as variáveis demográficas utilizadas pelos autores estão sempre presentes e são fundamentais para o direcionamento de toda e qualquer política pública.

Os autores, baseados na proposta de Goerl, Kobyiama e Pellerin (2012), utilizaram oito variáveis do Censo Demográfico do IBGE que foram agregadas em seis indicadores conforme apresentados no Quadro abaixo.


Na pesquisa desenvolvida pelos autores há um claro rigor metodológico para a elaboração do índice que, em suma, parte das variáveis demográficas apresentadas acima, define os setores censitários como unidade de área para o mapeamento final e pondera as variáveis pelo Índice de Desenvolvimento Humano de Campinas. A definição do setor censitário como unidade de análise é importante, pois ele se configura como a menor unidade de coleta de dados nos levantamentos realizados pelo IBGE, permitindo desse modo a leitura espacial da vulnerabilidade em territórios intraurbanos. A integração entre as diferentes variáveis foi realizada em ambiente SIG[1] conforme a Equação[2] abaixo.

Importante destacar que os autores supracitados ainda destacam que, para viabilizar a padronização dos dados censitários, os indicadores de vulnerabilidade foram escalonados de 0 a 1, adotando zero (0) como valor da variável mínima e um (1) o valor da variável máxima, conforme Fritzsche et al., (2014) apud Marques, Silva e Camargo, (2017, p. 1861). O índice de vulnerabilidade obtido foi classificado em cinco intervalos de ocorrência: baixa, média-baixa, média, média-alta e alta (op. cit).

A partir do mapa da vulnerabilidade social elaborado e divulgado pelos autores mencionados é que se formulou a questão norteadora desta nota técnica. Para respondê-la ainda utilizando as variáveis dos dados do Censo Demográfico de 2010, optou-se por espacializar, em separado, os dados de dependentes[3] na região noroeste por entender que se trata de um público que necessita de uma rede de proteção articulada na defesa de seus direitos e que, dado ao caráter de dependência, são fundamentais para a superação do ciclo vicioso da pobreza estrutural. Para esse estrato da população foram identificados aqueles setores que possuem uma proporção de dependentes igual ou maior a 25%.  Em seguida, ainda na perspectiva de entender a questão da espacialização por sexo neste recorte territorial, procedeu-se a um novo mapeamento com este foco, em que foram destacados os setores com população masculina superior a 50% e o mesmo para os setores com população feminina majoritária. Vale discriminar que as operações de geoprocessamento foram todas realizadas nos Softwares ArcGIS (ESRI, 2016) e R (R Development Core Team, 2020).

A Região Noroeste[4] na perspectiva da vulnerabilidade territorial

De acordo com informações do site da Prefeitura de Campinas, a região noroeste possui cerca de 145 mil habitantes e abriga equipamentos urbanos extremamente importantes, como o Pronto-Socorro do Campo Grande e o Hospital e Maternidade Celso Pierro, mais conhecido como Hospital da PUC-Campinas. Importante também destacar as materialidades técnicas que permitem grande fluidez por toda a cidade de Campinas e que passam nesta macrorregião: as Rodovias Anhanguera e Bandeirantes, além do Corredor Metropolitano Noroeste. Esse Corredor Metropolitano é importante via arterial que reorganiza o transporte intermunicipal, atendendo as cidades vizinhas de Hortolândia, Sumaré e Monte Mor.

Esta região é atendida por duas AR’s – Administrações Regionais, sendo a AR05 e a AR13, conforme evidenciam as figuras abaixo.


Observando as figuras, é perceptível o quanto essa região é desigual territorialmente. Na AR05, temos bairros formados graças a um movimento de expansão urbana mais antigo, fruto do primeiro grande movimento expansionista da cidade. Esse movimento foi marcado por uma ressignificação da cidade, das suas funções e do papel da região central. Populações pioneiras nesta área, sobretudo parda e preta, foram expulsas para áreas periféricas, dando vida aos bairros, hoje consolidados da AR05.  Já a AR 013 é marcada por um movimento de expansão urbana mais recente, notadamente pós anos 2000. Esse movimento é muito aderente à situação econômica do país, além de políticas públicas próprias da dinâmica urbana de Campinas. Dessa maneira, é uma porção territorial que traz aspectos já consolidados, bairros com identidades bem definidas e áreas com ocupação mais recente, fruto de movimentos migratórios nacionais e intrarregionais, ainda carentes de infraestrutura básica. Essa contradição espacial provoca muitas confusões no imaginário coletivo urbano que, na maioria das vezes, generaliza a situação como se toda a região tivesse a mesma configuração e organização espacial.

Com relação ao Índice de Vulnerabilidade Social – IVsocial – elaborado por Marques, Silva e Camargo (2017), temos a seguinte imagem para Campinas:

Ao se cotejarem as variáveis densidade demográfica, taxa de dependentes, número de moradores por setor censitário, taxa de analfabetos, moradores por domicílio e taxa de carência de rendimentos é perceptível o quanto o índice “muito alto” se concentra na porção oeste do município, num corte norte-sul, evidenciando claramente as diferentes políticas de ocupação e expansão da cidade. Conforme nos aponta Cunha e Falcão (2017), à medida que a cidade avança, os bolsões de desigualdade social se evidenciam e marcam a paisagem por décadas, a despeito das políticas públicas existentes, sendo, infelizmente, marca da dinâmica da maioria das cidades-sede de regiões metropolitanas. Esta persistência da vulnerabilidade social no território se deve à própria pobreza estrutural que a envolve, conforme nos indica Silveira (2013). A pobreza estrutural se refere à não superação da escassez, por mais que os mais pobres consigam adquirir novos bens de consumo, via endividamento, na maioria das vezes. Instala-se uma desigualdade estrutural que é o espelho da competição urbana: de um lado, um circuito superior da economia, marcado por suas redes técnicas, grandes conglomerados e a alta fluidez do capital; de outro, o circuito inferior, ligado à vida cotidiana e aos tempos lentos da produção e do consumo locais. O fenômeno urbano se desenvolve à mercê desta contradição evidenciada na disputa entre o que é economia política da urbanização e a economia política da cidade (SANTOS, 1994).

Esta dinâmica é claramente percebida em Campinas que é considerada uma das cidades mais ricas do país e se destaca como polo de desenvolvimento científico e tecnológico. Uma porção territorial é beneficiada diretamente pela riqueza global, ao passo que a outra porção enfrenta as mazelas de uma desigualdade gestada na concentração da densidade técnica.

Esta situação descrita se refere às regiões noroeste e sudoeste de Campinas que apresentam as manchas mais concentradas do índice de vulnerabilidade social, mesmo estando próximas a grandes materialidades técnicas como as Rodovias e o Aeroporto Viracopos, denotando uma concentração espacial da exclusão social no território.

Quando espacializamos os dados relativos à taxa de dependentes, temos a imagem apresentada abaixo:

Do ponto de vista espacial, é evidente o quanto este dado se comporta diferentemente nas duas ARs que formam a região noroeste. A AR05 está mais concentrada, muito próxima à Rodovia Anhanguera, revelando o papel dual desta materialidade: ao mesmo tempo que significa a mobilidade, a fluidez e o dinamismo da cidade de Campinas, no seu entorno se concentra a marginalidade, a segregação socioespacial e, mais sério, a vulnerabilidade territorial. Nesta AR há um “bolsão” da vulnerabilidade que deve ser acompanhado do ponto de vista da temporalidade, ou seja, passada uma década, cabe investigar se ele permanece exatamente como estava em 2010 ou arrefeceu em função da implementação de políticas públicas voltadas a esse público.

Já na AR13 a proporção de dependentes é dispersa pela área, embora claramente presente nas áreas onde o índice de vulnerabilidade social é “alto” e “muito alto”. Isso indica o quanto a vulnerabilidade nesta área deve ser fruto de um cuidado permanente e eficaz por se tratar de pessoas mais suscetíveis a permanecer em um ciclo vicioso da pobreza estrutural.

Mas essa imagem evolui para uma outra pergunta igualmente importante: este púbico é, na sua maioria, masculino ou feminino? Por que tal questão é importante? Obviamente partimos do pressuposto de que a vulnerabilidade é sempre preocupante, independente das questões de gênero. No entanto, homens e mulheres demandam políticas públicas específicas e, se o anseio maior é minimizar os índices de vulnerabilidade nesta região, cada público deve requerer ações e estratégias bem direcionadas às suas necessidades. Responder a esta questão nos aproxima mais um pouco do perfil de pessoas que enfrentam a vulnerabilidade e, certamente, não possuem condições, sozinhas, de romper com um ciclo vicioso de diversos riscos a que estão sujeitas. O mapeamento por gênero encontra-se nas duas figuras abaixo:

A título de facilitar a abordagem optou-se por um recorte acima de 50% da presença do público masculino e/ou feminino e é evidente o quanto o público feminino é a grande maioria nas duas ARs da região Noroeste. Os homens encontram-se mais dispersos ao passo que as mulheres estão concentradas e são a maioria. Obviamente cabe agora aprofundar o olhar para esse público a fim de discutir políticas públicas: onde temos as mulheres mais idosas? E as mais jovens? Que serviços são específicos para elas neste território? Como os acessam? Ainda, essas mulheres são as mantenedoras de suas famílias? Essas são algumas questões que, se respondidas, guiarão futuras ações, estratégias e decisões com vistas a minimizar o índice de vulnerabilidade tão evidente nesta região.

 Considerações finais

A vulnerabilidade, per si, é um tema complexo. Essa complexidade se deve aos vários aspectos que ela engloba e, mais ainda, à dimensão política que sempre a sublinha. A dimensão política diz respeito ao uso efetivo do território, como nos alertava Milton Santos (2001), ou seja, para entendermos a vulnerabilidade é preciso também especificar como a população é atendida em serviços básicos que, a priori, devem garantir uma rede de solidariedade e promoção da autonomia.

Também é sabido que a vulnerabilidade social não deve ser tratada apenas sob o viés econômico, tampouco como se fosse de resolução individual, ou seja, não cabe ao indivíduo melhorar as suas condições de ativos, até porque a desigualdade no sistema capitalista, por ser estrutural, não permite a todos as mesmas condições de acesso. Entende-se, claramente, que é necessário o estabelecimento de uma rede movida e gerenciada por políticas públicas intersetoriais, em diferentes escalas, capazes de minimizar ou até mesmo suprimir os principais riscos que acometem às populações mais pobres e, neste caso, majoritariamente feminina.

O estudo aqui apresentado teve o objetivo de, a partir do IVsocial apresentado por Marques, Silva e Camargo (2017), entender o comportamento espacial da população dependente e perceber a espacialização entre homens e mulheres. O resultado é a clara presença das mulheres nas áreas mais vulneráveis, o que reforça a necessidade de redes que as acolham e lhes garantam condições de lidar com os diversos riscos que as acometem e as mantém reféns permanentes da exclusão. Cabe lembrar ainda que as mulheres são vítimas de violências que, infelizmente, perduram no nosso país por décadas e essa situação certamente aprofunda mais ainda o ciclo vicioso da pobreza estrutural a que estão submetidas.

Finalizando, vale lembrar que os dados utilizados são de 2010, portanto, de uma década atrás. São úteis na perspectiva de continuidade dessa análise elaborando um portfólio a respeito do comportamento espacial da vulnerabilidade nesta região. Assim, cabe a atualização destes dados com vistas a perceber como o IVsocial se comportou neste período, percebendo aí a sua temporalidade, defendida no início deste texto. Tão importante quanto investigar é a implementação de políticas públicas voltadas ao público feminino e a resposta espacial desse público a essas políticas. Em outras palavras, a vulnerabilidade socioterritorial deve ser combatida permanente e intersetorialmente, com vistas a diminuir a desigualdade estrutural que se perfaz na vida de milhares de pessoas.

Referências

CUNHA, José Marcos Pinto da; FALCÃO, Camila Arelas (orgs). Campinas metropolitana: diversidades socioespaciais na virada para o século XXI. Campinas, SP: Librum Editora, 2017, 80p

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GOERL, R. F.; KOBIYAMA, M.; PELLERIN, J. R. G. M. Proposta metodológica para mapeamento de áreas de risco a inundação: estudo de caso do município de Rio Negrinho– SC. Boletim de Geografia, v. 30, n. 1, p. 81-100, 2012.

IBGE – Censo Demográfico 2010. Resultados do universo por setores censitários, 2011. Disponível em: <https://censo2010.ibge.gov. br/resultados.html> Acesso: 20 fevereiro 2020.

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Texto para discussão:  vulnerabilidade social no Brasil: conceitos, métodos e primeiros resultados para municípios e regiões metropolitanas brasileiras. Rio de Janeiro, 2018.

MARQUES, Mara Lúcia; SILVA, Maurício Corégio da; CAMARGO, Danilo Mangaba de. Análise Espacial da Vulnerabilidade Socioambiental no Município de Campinas, SP, Brasil. Revista Brasileira de Cartografia, nº 69/9, 2017, pp. 1857-1870  

R Development Core Team. R: A language and environment for statistical computing. R Foundation for Statistical Computing, Vienna, Austria, versão 4.0.2. 2020.

SANTOS, Milton. Por uma Economia Política da Cidade: O Caso de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1994.

SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. São Paulo: Record, 2001.

SILVEIRA, Maria Laura. Da pobreza estrutural à resistência: pensando os circuitos da economia urbana. Ciência Geográfica. Bauru-SP, Vol. XVII – (1): Janeiro/Dezembro, 2013, pp. 64-71



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